POR GABRIEL JOSÉ
Estudante de Cinema da UESB
Do que uma pessoa é capaz para atingir seus objetivos? O que ela diria? O que esconderia? Mentiria? Fingiria ser outra pessoa? Para Eve Harrington (Anne Baxter), dona de um rostinho angelical e de uma voz doce, todas as respostas servem.
Sonhando com o sucesso nos palcos londrinos, a moça simples, de passado obscuro, consegue aproximar-se de seu grande ídolo, a estrela da Broadway Margo Channing (Bette Davis), a fim de atingir seus objetivos, mesmo que para isso tenha que se transformar em alguém que não é.
Desde o primeiro filme falado do cinema, em 1927, nunca uma história sobre ambição, jogo de interesses, inveja, obsessão e intrigas foi contada de forma tão definitiva. Talvez, o grande trunfo de “A Malvada” seja a sensação de dejavú, a de que você conhece ou conheceu alguém como Eve, a sensação de que você conhece essa história e sabe como ela termina. E por falar de temas tão próximos à realidade e às relações sociais que estabelecemos, esse clássico da década de 50 continua tão atual e ainda tão elogiado.
Dissimulada tal qual uma Capitu de Machado de Assis, Eve infiltra-se lentamente, entre sorrisos e gentilezas infindáveis, na intimidade e no dia-a-dia da atriz, compartilhando detalhes íntimos de sua vida e de sua rede de relacionamentos. Aos poucos, a mascarada devoção de Eve começa a incomodar Margo, que é incompreendida pelos amigos, dando início a uma sucessão de fatos meticulosamente arquitetados que culminam em sua ascensão meteórica como atriz.
O drama de 1950 escandaliza ao mostrar a manipulação e o jogo de interesses por trás da fama, sem dar limites à maldade humana. Eve não se importa com nada e nem com ninguém. Seu perfil é um ótimo exemplo da loura má, perigosa, destruidora de relações amorosas, manipuladora e falsa, capaz de tudo para chegar onde quer, desprovida de caráter e compaixão. É através de seu comportamento inescrupuloso que o roteiro coloca em pauta questões importantes na vida de qualquer ser humano, como as relações sociais, as máscaras que usamos, a busca pelo sucesso, a inveja e o talento para a malícia.Margo está envelhecendo, perdendo terreno. Eve representa o perigo, o novo e o belo. Margo sabe que deve ser substituída, sabe que assim como é nos palcos é na vida, não ficará no topo para sempre, pois sempre haverá alguém melhor, mais bela e mais esperta. Sua preocupação torna-se então resistir da melhor forma possível e se retirar dos holofotes com dignidade, abrindo espaço para outras, mesmo que essas outras sejam “Eves”. Desmascarada, a anti-heroína é obrigada a viver prisioneira das mentiras que criou e a encarar uma jovem que, assim como ela, também busca o estrelato. É através da ambição dela que Eve percebe que em breve vai aprender o que Margo já sabe.
Ao dissecar os pecados humanos em tela, tendo como pano de fundo o bastidores “afiados” do show business, o filme de Joseph L. Mankiewicz tem em seus diálogos e na construção de seus personagens seus pontos fortes. Bette Davis soube aproveitar muito bem a fama de má que lhe caía à época, fazendo uma Margo temperamental, explosiva e deliciosamente irônica, um estopim de saias. Suas falas e comportamento, sempre debochados e nocivos, divertiam e machucavam a todos na mesma proporção.AnneBaxter faz uma Eve à altura: primeiro apresenta-se gentil e inocente, para revelar-se, sorrateiramente, traiçoeira, vil e obstinada, ou seja, uma antagonista perfeita. Para lhe fazer companhia, George Sanders interpreta Addison De Witt, um sedutor e refinado crítico de teatro que acaba sendo tão perigoso quando a própria Eve. Celeste Holm, Hugh Marlowe e Gary Merrill arrematam um elenco fabuloso, que ganha um “plus” com uma participação tímida, ainda que inesquecível, de Marilyn Monroe (em seu sexto filme), como a aspirante Claudia Caswell.Joseph L. Mankiewicz, mais conhecido por “Cleópatra”, pode ser definido como um diretor sentimental e um roteirista e produtor de mão-cheia. Foi assim que chegou a dirigir 48 filmes e produzir mais de 20
para a MGM e Fox, na época, duas gigantes do cinema americano. Visionário, Mankiewicz supervisionou de perto “A Malvada” (baseado em um caso verídico publicado na revista Cosmopolitan em 1940): cuidou do roteiro, da direção e da escolha do cast.
O elenco principal e definitivo, que viria a ajudar o filme a ser um clássico, não era a primeira opção do diretor, que chegou a cogitar nomes como Marlene Dietrich, ClaudetteColbert, Ingrid Bergman.
A narrativa não-linear (em flashbacks), utilizada à exaustão hoje, foi na época uma grande ousadia, que inclusive vinha de Orson Welles em “Cidadão Kane”. A mão segura de Mankiewicz e sua preocupação em privilegiar as expressões dos personagens, em momentos cruciais da trama, são também pontos de destaque em “A Malvada”. O diretor contou ainda com a ajuda de Alfred Newman, um dos maiores compositores americanos, para compor uma trilha sonora presencial. O ar glamoroso que cerca a vida do show business foi reforçado pelo trabalho cenográfico e pela extrema elegância do figurino de Edith Head, um deleite à parte, e não à toa ganhador do Oscar daquele ano. O longa levou 6 prêmios dos 14 a que concorreu, entre eles o de Melhor Filme, Direção, Roteiro e Ator Coadjuvante para George Sanders.
Com tantos requisitos – e sem exageros – “A Malvada” tornou-se um dos filmes mais inspiradores do cinema. “Tudo Sobre Minha Mãe”, do cineasta Pedro Almodóvar, é um bom exemplo do fascínio que o longa de Mankiewicz alcançou. Mesmo após 64 anos, o longa continua sendo uma bela referência iconográfica. Tal qual um bom vinho, fica melhor enquanto envelhece: cada vez mais inteligente, irônico e afiado. Para ver, e rever, e rever, e rever e rever…
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