POR MARIANA KAOOS
Comecemos a matéria de hoje falando desse ano porque foi mais ou menos nesse período que as redes sociais, aliás, foi mais ou menos nesse período que o Facebook virou moda e passou a ser consumido de maneira frenética pela juventude classe média de todo o país. E, quando essa juventude descobriu o poder da internet e desses sites de relacionamento, ela passou a utilizar essas ferramentas em torno de construções próprias de personagens de si mesmos.
Então foi a partir daí que começou a valer a foto mais bonita, no lugar mais bombástico, com as pessoas mais glamurosas. Todo mundo queria mostrar-se bem quisto, popular, sensível, cotado, inteligente, enfim, todo mundo queria mostrar-se como uma pessoa de sucesso, poderosa, que tem uma vida agitada e profunda e feliz. Justamente por isso, foi também a partir daí que inúmeros trechos de autores engendrados dentro da literatura brasileira passaram a ser utilizados por esses jovens nas redes sociais. De todos os escritores, pensadores e “poeteiros”, dois em especial: Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu.
Sim, foi uma febre coletiva que durou mais de um ano. Frases, ideias, conceitos de Clarice e de Caio foram totalmente deslocados do seu contexto e significado original e jogados ao léu, reutilizados de maneira descompromissada pelas pessoas. O resultado é que a obra de ambos, principalmente de Caio, banalizou e suas frases, ricas em profundidade reflexiva, tornaram-se frases de auto ajuda, bastante superficiais, por sinal.
Bom, o certo é que a moda das citações foi minguando com o passar do tempo e nem Clarice e nem Caio perderam a força e a importância de suas obras. Domingo passado (04), por exemplo, a Mostra Cinema Conquista exibiu um longa metragem de Candé Salles intitulado Para Sempre Teu, Caio F., que aborda a trajetória do escritor. Existem planos para que a vida e a obra de Clarice também possam ir para as telonas. Independente disso, falar de Clarice Lispector e de Caio Fernando Abreu aqui se justifica porque quem já leu ou lê um pouco de ambos, consegue perceber a nitidez do que eles falam. E eles falam do dia a dia, dos detalhes do cotidiano, da semiótica dos gestos, das profundezas dos instantes.
O Café Society
Toda vez que vou ao Café Society e entro no seu mundo, tentando descobrir a história das fotos e cartazes pregados na parede, me sentindo confortável sempre com a sua meia luz, descobrindo uma nova canção através dos seus cantores convidados, lembro-me de um conto de Caio chamado Para Uma Avenca Partindo. A narrativa se passa em primeira pessoa, numa rodoviária. Entre o devir e a divagação, uma das ideias mais bonitas contidas no conto é a de que, para o personagem narrador, amar é conseguir ver e desamar é não mais conseguir ver.
No Café é possível notar rostos conhecidos com uma grande frequência. As pessoas que vão lá parecem que amam porque conseguem ver. Seus olhos trazem sempre o brilho escancarado das paixões. E há expressões de prazer no saborear a cultura impregnada em cada canto do local. A comida, a bebida e as apresentações musicais formam um bolo cultural de altíssima qualidade. Otávio, o dono do ambiente, é também músico e boêmio e recebe a todos de maneira íntima, como se fossem amigos de longas datas e tivessem marcado de se encontrar para confraternizar algo.
Parece que as pessoas que frequentam e, mais ainda, as pessoas que se apresentam no Café Society amam a difusão cultural e veem a necessidade de mantê-la viva. E por isso consomem, sem restrições, tudo o que é oferecido. Pelo menos tudo o que é oferecido no Café, o que é uma grande coisa, já que as ofertas culturais encontradas lá são sempre vastas e híbridas.
Na noite de ontem, o prato cheio da casa foi a apresentação musical de Thainan Varges. Acompanhada de Lavos, integrante da banda Distintivo Blue, Thainan ofereceu ao público um repertório sinestésico, cheio de referências estrangeiras de décadas passadas, bem como sons mais atuais. Foi sua quinta apresentação no Café Society.
Thainan é daquelas pessoas que tem gostos peculiares. Sua bebida preferida é vitamina de abacate e sua cor, ciano. Ela gosta muito mais do nascer do sol do que do por e adora ficção, literatura fantástica. Seu livro preferido é As Crônicas de Gelo e Fogo e ela se recusa a assistir sua adaptação na série Game Of Thrones porque acha um absurdinho como descaracterizaram a história original. Thainan é do signo de gêmeos com ascendente em peixes e possui apenas 21 anos. Ela compõe samba, apesar de só cantar em inglês. Ultimamente não tira do repeat todas as músicas da cantora Florence The Machine. Tem seis meses que ela começou a se apresentar na noite, sempre em lugares que ofereçam uma proposta diferenciada de espaço, como o Café e a cervejaria Mata Branca. Ah! Thainan é minimalista. Seus gestos são sempre sexys, sensuais, porém, envoltos de sutiliza exacerbada.
Ontem, fui assistir ao seu show da mesma maneira que comecei a ler Clarice: sem nenhuma pretensão, esperando pouca coisa ou, como diz Caio, esperando que fosse uma “plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira”. E, como em ao ler Clarice, estranhei o seu som à primeira ouvida. A narrativa de Clarice e o som de Thainan são estrangeiros em mim, por ser diferente de tudo o que eu costumo ler, ouvir e ter como referência. Contudo, após permanecer, me deixar conhecer e me perder em ambas, as palavras de Clarice se mostraram sublimes e o som de Thainan poético e inspirador.
Thainan canta Lana Del Rey, Beatles, Cindy Lauper, Janis Joplin, dentre outros. E, nos dentre outros e todos esses, ela, com as mãos cheias de anéis apoiadas em seu colo, canta a si mesma, ainda que não saiba. Pegando emprestadas algumas palavras de Clarice, Thainan apresenta ao público a sua verdade inventada e se apossa do é da coisa.
(“Estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa”).
E, quando se apossa do é da coisa, ela às vezes desafina, se distrai em expressões e falas alheias, se perde em si mesma. O que é extremamente natural para uma cantora que está começando e para uma geminiana, de gostos peculiares como os dela. Caio, Clarice, o Café Society e também Thainan possuem em si a expressão perfeita do comprometimento e devoção ao que fazem. Talvez, se olhados de maneira rápida e frívola os quatro sejam apenas “alguma coisa”, utilizados em algum momento como fonte de entretenimento. Certamente que para os que prestam atenção, eles se transformam e oferecem muito mais sabedoria, profundidade e surpresas do que o que se possa imaginar. Se em algum momento Thainan irá se consagrar como Caio, Clarice e o Café Society já se consagraram eu não sei. Contudo, ela já é segura e certeira no que faz e, sem sombra de dúvidas, uma nova cantora que está surgindo e tem muito que mostrar.
Sugestão de consumo:
Caio Fernando Abreu: O Ovo Apunhalado
Clarice Lispector: Água Viva
Café Society: Calabresa ao molho curry e as diversas opções de cerveja
Thainan Varges: a sua interpretação de canções de Lana Del Rey.
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