POR MARIANA KAOOS
*Esse texto é dedicado a todas as pessoas que, em meio a crises existenciais, acreditam que o devir, a filosofia é algo vago e impossível de ser aplicada no cotidiano e nas produções culturais artísticas.
Há muito, muito tempo atrás, numa terra distante, havia um menino. Um menino como outro menino qualquer. Era magrelo e tinha um barrigão de verme. Olhos esbugalhados, igualzinho ao dos irmãos. Pés calejados de tanto andar descalço. O menino era comum, exceto pelo seu jeito de enxergar a vida. Sua família morava ao lado de um rio e, todos os dias, seus irmãos iam brincar com a água e com os peixes. Em alguns momentos ele brincava junto, mas, na maioria das vezes, ficava apenas sentado, observando o rio e sentindo a vida passar através dele. E era bom. E era também doloroso. Doloroso porque extremamente difícil para uma criança em solidão descobrir e apalpar certas verdades da existência.
Mas, aos trancos e barrancos o menino seguiu. Seguiu e cresceu. Tornou-se um robusto homem com longas barbas que se confundiam com os cabelos. O menino não mais menino, agora homem, aprendeu a se expressar de maneira contundente. Encontrou pessoas parecidas consigo e, através delas, descobriu um universo de contemplação e afirmações. Passou a ser chamado por todos de filósofo. O filósofo Heráclito de Efeso, pai da dialética. E o rio da sua infância, bom, o rio da sua infância tornou-se objeto de estudo e conclusão na vida dele.
Foi justamente Heráclito quem me acompanhou na noite de ontem (14). Fomos juntos, eu e ele, em pensamento, ao Café Society, assistir pela segunda vez a apresentação de Thainan Varges e Lavus. E, assim como o nosso filosofo do momento afirmava sobre o rio (numa explicação vulgar, de que é o mesmo rio, mas nunca é O MESMO rio, porque tudo muda), a apresentação dos meninos e o próprio Café tornaram-se novíssimos diante de meus olhos.
A luz, o figurino, o repertório (dessa vez, recheado de Jack Clement, Bob Dylan, Florence the Machine, Duffy e Cindy Lauper) e até mesmo a maneira de Thainan se posicionar em palco era tudo novidade. Ainda que fossem os mesmos cantores de quarta-feira passada, ontem, estavam totalmente diferentes. Havia um pouquinho mais de segurança no palco. E a voz de Thainan entrou em total harmonia com as notas dedilhadas no violão. Otávio Henrique, dono do Café e grande percussionista, fez uma participação mais que especial tocando bateria e um instrumento estranho, de som boníssimo, que parece aqueles negócios que lavadeira usa para lavar roupa. Referência complicada, eu sei, mas dá para usar a imaginação. Quem também deu uma canja foi Bruno Graeser. Ele é um rapaz muito simpático e de voz grave e intensa que está começando agora. É primo de Lavus e parece ter o rock ‘n’ roll na veia. Muito possivelmente iremos ouvir falar dele mais vezes.
Ao entrar no Café Society pela milésima vez, ontem foi como se tivesse sido a primeira. Lembrei novamente de Heráclito e percebi que mesmo em objetos sólidos, em espaços fechados, a mutação é constante e perceptiva, porque agora ela depende unicamente da subjetividade e experiência do indivíduo. Com espanto, só fui perceber ontem que na porta do Café há um quadro de tamanho moderado, alertando que o couvert artístico no local tem o valor de R$8,50 por pessoa. Não sei se vocês sabem, porque eu também não sabia, mas é lei e é obrigatório que os estabelecimentos culturais coloquem avisos acerca do preço do couvert. Aqui em Vitória da Conquista, pelo que percebi, só o Café Society cumpre essa lei.
Outra coisa bacana de se reparar é que, na parede direita do local, há dois quadros enormes em preto e branco, bem pertinho do balcão. O primeiro é dos Beatles com Paul, Ringo, John e George (exatamente nessa ordem) sorrindo e abraçados, no auge da juventude e amor. O segundo quadro consegue ser ainda mais bonito. Ele mostra Tom Jobim sentado ao piano e Vinicius de Moraes em pé, como se ambos estivessem cantando algo. Tom está novo e lindo na fotografia e Vinicius atento ao maestro. Por que justamente esses quadros ficam ao lado um do outro? Seria uma tentativa de Otávio mostrar a magnitude e importância dos Beatles e de Vinicius e Tom para a consolidação da musicalidade mundial? Ou a posição das fotografias na parede não passa de uma mera coincidência?
E em relação à beleza que Thainan exprime quando está em palco, ela vai ser perpetuar a cada apresentação? O som da gaita de Lavus, continuará trazendo acalanto para os ouvidos solitários? As inúmeras cervejas do Café serão sempre geladas? E, sendo sempre as mesmas, os sabores irão mudar de acordo com o estado de espírito de quem bebe? Os Beatles pregados na parede continuarão sempre a sorrir? E Tom e Vinicius estarão iniciando ou finalizando uma canção? São esses e diversos outros questionamentos, filosóficos ou não, que dão inquietude e paixão e motivam o ser a procurar e querer mais e se surpreender com o que parece óbvio, mas nunca é.
A permanência, quando acompanhada de um estado racional e consciente, gera profundidade. E as quartas-feiras, que sempre pareceram monótonas e exaustivas, têm proporcionado encontros, sorrisos e descobertas. Que Thainan e Lavus possam, de uma forma ou de outra, sempre permanecer. E que o Café se torne, cada vez mais, o espaço de profundidade, produção e compartilhamento de cultura, conhecimento e arte.
Fotos: Maiêeh Sousa
Nenhum comentário:
Postar um comentário